O mundo coloria-se ao meu redor. Minha cabeça doía e o corpo
latejava, a imensidão branca ardia os olhos. Observava incrédula e perdida ao
meu redor, tentava achar algum sentido à tudo que ocorrera enquanto estive
presa e desacordada. Haviam estilhaços de algo que tornara-se rubro por um
rastro de sangue que chegava à um ser que estava agachado em meio a neve. Em um
momento de sanidade, percebi: Precisava ser breve. O nobre cavaleiro estava de
joelhos e envolto por uma enorme poça vermelha que parecia provir dele. Por
mais que estivesse com vestes finas, o desespero aquecia-me. O monstro no alto
da montanha já não urrava mais em meus ouvidos, parecia morto ao longe. Talvez
fosse a minha libertação a causa desta morte, mas eu não podia pensar tanto
nisso agora.
Levantei e aproximei-me trôpega até o cavaleiro, minhas
pernas não moviam-se direito por causa do frio cortante. Estava agachado e
apoiado sobre as pernas, com o corpo escondia os braços e ao seu lado repousava
ensanguentado um pequeno punhal prateado. Por trás, ouvia-se um barulho
distante, pareciam feras rugindo em agonia. Desviei o foco do horizonte e
busquei seus olhos, contudo estava muito fraco e apenas fitou-me por entre os
cabelos que lhe cobriam a face. Não sabia o que fazer e deduzi que devia-lhe
minha vida. Delicadamente, peguei um de seus braços: um corte imenso o cobria.
Puxei sua capa e amarrei uma das pontas com cuidado fechando o ferimento, com
esperanças de que o estancaria. Ele olhava-me surpreso, parecia querer dizer
algo mas as palavras morriam em sua garganta.
Mais uma vez um grito destoava ao horizonte gélido, e eu dizia
à mim mesma que estava tudo sob controle... ou deveria ficar. Fitei-o com um
sorriso triste, tentando conter os
pensamentos ruins que me assombravam. Acariciei levemente seu rosto com as
costas das mãos que estavam limpas em uma tentativa de acalmá-lo e continuei à
analisar os cortes que lhe esvaiam a vida. Era um homem belo, diferente aos
padrões que se via, suas características se harmonizavam perfeitamente.
Observava-me calado, apreensivo e enfraquecido: seu olhar tinha um brilho
distante no qual eu perdia o senso de tempo observando-o. O frio castigava-me e
estremecia, porém não poderia deixar este brilho perder-se de vez.
Corri rapidamente com os
olhos ao nosso redor em busca de algum lugar para o acolher da nevasca que
aumentava gradativamente. Desprendi a capa de seu pescoço sem que percebesse e
a envolvi mais aos ferimentos para conter o sangue que o banhava gota à gota.
Eu via o seu declínio próximo, podia sentir a dor que o torturava pela
expressão séria que ele fazia a cada leve movimento meu. De alguma forma um
sorriso esperançoso ilustrava minha face, não havia cogitado ainda a ideia de
perdê-lo.
Havia uma ravina próximo à
nós. Estudava mentalmente como o levaria até lá, havia esquecido completamente
do frio e não notara que, no horizonte, quatro figuras estranhas surgiam.
Estava perdida... Sussurrei em seu ouvido que precisava levá-lo até o abrigo e
ele olhava dentro de meus olhos como se relutasse minimamente. Por mais que
fosse menor e mais baixa que ele, o ergui cuidadosa e forçosamente, em passadas
curtas nos aproximamos da clareira, que parecia pequena à uma meia distância.
O recostei em um grande
aglomerado de gelo que havia na entrada da grande ravina e o cobri com o
restante livre da enorme capa . Começava à suar frio e seus lábios se mexiam na
tentativa de pronunciar-me algo. Lágrimas tímidas brotaram em meus olhos,
sentia que nada podia fazer. Segurava seus braços com uma mão e com a outra,
acariciava seu rosto tomado pelo suor. Havia uma sintonia em nós que se perdia
lentamente, minha cabeça latejava de tanto tentar buscar soluções...
Um barulho estremeceu-me e
tirou meu olhar dele. Havia esquecido das criaturas que surgiam ao longe. Estas
estavam sobre a grande mancha de sangue que havia ficado para trás e pareciam
farejá-la. Concluí que estavam em busca dele, do cavaleiro. Lembrei-me do
punhal, mas onde o havia deixado? Olhei apressada para o nosso redor, o punhal havia
se perdido. Mas percebi que o cavaleiro trazia algo em sua bainha. Ele seguiu
meu olhar e com um gesto com a cabeça, assentiu que eu a pegasse.
Retirei a espada da capa com
medo, eu não sabia lutar. Ainda agachada olhei para o moço de relance e, com um
sussurro quase sem som, dizia-me de alguma forma para matá-las. Pensei pesarosamente,
não deveria deixar de tentar. Levantei-me sem jeito, ela puxou meu braço para
baixo enquanto eu fazia força para erguê-la. Fechei os olhos e concentrei-me,
não podia fraquejar logo agora.